Monday, April 21, 2008

Os Outros

Eu costumo escrever sobre os males da minha equipa e mandar recados ao treinador do Benfica, aos jogadores e ao presidente. Ando nisto há uns três ou quatro anos e, feitas as contas, ninguém me liga nenhuma. Por isso, hoje vou falar dos outros. Pronto. Ah, e é possível que mande gente à merda e coisas assim do género. Ultimamente ando muito impulsivo e não posso responder por mim.

Para começar, com o mal dos outros posso eu bem. Aliás, muitíssimo bem. Mais, regozijo-me com o mal dos outros. Sócrates defendia que só o oposto permitia a ampla definição e consequente percepção de um fenómeno. Só conhecerás o bem se conheceres o mal, o prazer se conheceres a dor, o preto se souberes o que é o branco, e por aí fora. Eu vou mais longe que o Sócrates: só conheço o meu bem se os outros estiverem mal. Senão, estando todos nós bem, não estou bem pôrra nenhuma. Se a gente não se diferencia, não é, como é que eu sei se estou bem, se olho para vocês, meu bando de retardados, e vos vejo felizes? Isto não é assim que funciona, senhor Sócrates. Ponto um, que é inegociável: no futebol, eu só conheço o bem se os outros estiverem mal.

O meu problema aqui é esses "outros", que cada vez mais assumem uma identidade transitória ou, indo mais longe, mutante. Uso o termo "mutante" porque uma pessoa associa um "mutante" a uma cena feia, disforme, mal-cheirosa e não sei quê. E ranhosa. Portanto, uma tixa. Só que em mutante, que é ainda mais feia, disforme e mal-cheirosa. E ranhosa e não sei quê. E já lá vamos, estou só a engonhar. A introduzir, digamos.

Eu sou do tempo em que os matrecos eram Benfica - sportém. Mainada. Um gajo era puto e nascia ou do Benfica ou, com algum azar, do sportém. Quando ocorria este segundo caso, havia sempre um primo mais velho que tentava, à custa duns carolos e duns cromos do europeu ou do mundial, encaminhar a criança. Quando esta se revelava demasiado obtusa, a malta desistia e dava-lhe uma alcunha esquisita, toda loser. O que não faltam aí é nelinhos e derivados. Depois, havia uma terceira alternativa: malta que nascesse nos subúrbios de Matosinhos, por vezes, nutria uma paixão injustificada por um tal de folcuporto. Mas a esses não dava para tentar rectificar, porque estavam longe e falavam com uma pronúncia estranha e bês em tudo quanto é lado. Mas "esses" também não chateavam ninguém e suspeito que mesmo lá no buraco deles, se queriam jogar matrecos, tinham de escolher entre o Benfica e o sportém, como as crianças normais.

Nesse tempo, eu torcia pelo Benfica, com toda a paixão, e contra o sportém, com uma pontinha de nojo e aquela superioridade explícita e justa com que deus dotou todo o benfiquista. Nesse tempo, se o folcuporto jogava na Europa, eu achava imensa piada e puxava por eles como se se tratasse do Vitória de Setúbal ou da Académica. Por exemplo, quando o folcuporto foi camp... enfim, quando ganhou lá cena aos alemães com os calcanhares e não sei quê, eu achei aquilo extremamente inovador, por um lado, e cómico, por outro. O folcuporto tinha esse encanto para mim: tinha um presidente que falava devagar e esquisitamente e dizia piadas muito rebuscadas; tinha um capitão de equipa que falava tão mal que não se percebia; e tinha um treinador que falava bonito, mas que também não se percebia. E ganhava jogos com os calcanhares. Não é o máximo? Eu acho.

Não me apercebi, nesse tempo, que aquilo era apenas o princípio da tal mutação. Estavam a nascer os novos "outros". Porque a gente, à segunda-feira, encontrava-se na escola e dizia "atão? Os 'outros' lá levaram mais 3 do Covilhã... eh eh eh" e pumba, o Paulinho das Calças ia para o meio da roda e levava boladas para assinalar a ocasião. Ou então "epá, os 'outros' estão a quantos de nós? 8 pontos? Isto 'tá perigoso..." e continuávamos paciente e cientificamente a espreitar pela fechadura da casa-de-banho das raparigas - o Tiquinho, irmão do Nelinho, ficava de guarda, não fosse aparecer a shô-contina. E, enquanto nos distraíamos numa alegria pré-púbere, com a inocência de quem descobre coisas novas, quer nos quiosques onde, até então, apenas A Bola era motivo de interesse, quer em casa da Clarinha, às terças e quintas-feiras, o folcuporto ia continuando a fazer coisas estranhas, como ganhar campeonatos, de vez em quando, e, mais frequentemente, uma outra caneca que eles inventaram para serem sempre eles ganhar, que era a supertaça.

Anos mais tarde, já a Clarinha era casada com um sargento da EPAM, que sofria de falta de auto-confiança, e o Nelinho começava a cumprir 15 anos no Linhó, comecei a pensar "hum... mas eu torço contra 'os outros' e afinal quem nos anda a fazer concorrência, já lá vão 18 anos, são aqueles lá de cima?!... Nah, isto tem de mudar". E mudou. A teoria comprovou-se que era séria, encarregou-se o tempo de o fazer, pois o sportém nunca mais chateou ninguém que importasse e o folcuporto voltou a ganhar taças na Europa e campeonatos e, claro está, as famosas supertaças.

Tudo corria muito bem, com extrema normalidade, de modos que a gente já nem ligava às tixas, eram apenas mais uma forma de entretenimento, semelhante à Playstation, às lutas na lama ou às despedidas de solteiro do pessoal. Não tinha importância nenhuma nas nossas vidas, fazia-nos rir e, por vezes, cometer excessos, fazer um ou outro disparate ou até mesmo pagar para ver. Os Outros eram, oficialmente, o folcuporto. As tixas eram as tixas e pronto. Os paralíticos, a turminha ou os nelinhos são outros epítetos aplicáveis ao referido grupo excursionista. Dizia eu que corria tudo muito bem, mas deixou de correr. Estava eu este domingo no meu repasto, a pensar em 10 cenas fixes para dizer hoje quando chegasse ao trabalho, só naquela, não fosse o Lisandro tecê-las... ainda mais, quando dou por mim a festejar ardentemente um golo de calcanhar de um rapaz da União de Leiria. Tenho para mim que foi reminiscência.

Aquele calcanhar, aquela pontinha de nojo pelo Tonel, aquela vontade de rir tão feliz e inocente, um certo desejo de vingança e a sensação de "bem" por oposição à noção de que "os outros" estavam mal... que mal, estavam péssimos, estavam no fundo do fundo, estavam a ser rabiados, humilhados, esmagados pelos últimos classificados, fez-me sentir um apreço pelo meu ódio ao sportém como há muito não sentia. De tal forma, que, enquanto os verdadeiros "outros" nos aviavam, sem espinhas e com algum cuidado para não estragar, duas batatas sem resposta, não consegui desfazer o semblante sorridente e nem levei a mal aos tripeiros o facto de nos terem ganho mais uma vez. Por um dia, o sportém voltou a ser "os outros". E hoje, um pouco por todo o planeta, as crianças brincam com normalidade... "Nelinho, és tu no meio"... Às vezes, a vida é tão simples.

15 Comments:

At 7:26 PM, Blogger B said...

Belo texto sissenhor.
Ontem, se bem me lembro, pela primeira vez (mas posso estar enganado...) tive vergonha de ser Sportinguista.
E faz hoje uma semana que o filho da mulher ali do café, eterno (julgava eu) lampião chato comá putaça dizia "Agora sou do Sporting. Não quero saber mais do Beinfica".
Porra que miséria.

 
At 7:50 AM, Blogger Perfumes said...

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At 8:41 AM, Blogger vinhas said...

Faltou apenas falar daqueles rapazes da Cruz de Cristo, fogosos anjinhos que ganharam um campeonato em 1960. Bons moços aqueles...Agora estão mais saídos da casca, já em 5º lugar e a dar 5 ao Setubal...Premonição?...

 
At 11:11 AM, Blogger Metralha said...

Diego,

pensa positivo. Na Liga do Ultimos os matrecos benfique - Sporting continuam actualizados.

PS: por falar em ultimos como anda a classificação caótica?

 
At 12:03 PM, Blogger Férenc Meszaros said...

This comment has been removed by the author.

 
At 12:06 PM, Blogger Férenc Meszaros said...

Muito bom post guitarrista. Principalmente porque, embora num lado oposto, me revejo em quase tudo o que dizes.

E se te alegrou a derrota do Sporting contra um terceiro, devias então sentir o que é a tua própria equipa dar 5 áqueles que tanto desprezas, em pouco mais de 20 minutos, depois de estarem a ganhar por 2-0. E de os ouvir engolir os 'olés'. E de teres provocado uma depressão no clube, na equipa e nos adeptos. E de seres a causa de um estado de sítio com manifestações e confrontos com a polícia de intervenção.

Achas que a alegria de ter humilhado de um forma tão superior e de ter causado tanto dano àqueles que presunçosamente se auto-entitulam melhores do que qualquer um, mesmo que nos ultimos 10 anos não sejam mais do que soberbos patéticos alheados da realidade, desaparece mesmo depois de perder por 4 com o ultimo classificado? Hmmm... Pensa melhor.

Mas entendo que vos sirva deconsolação. Aliás, pouco mais vos resta...

 
At 1:50 PM, Blogger . said...

Está um belo texto, sim senhor. Um tanto duro para com o Sporting, mas percebe-se o tom entusiástico contra os tais "tixas", quando se é afastado da Taça de Portugal (última hipótese de o Benfica mostrar alguma coisa aos seus adeptos, apesar de não se saber bem o quê) pelos próprios; sobretudo quando estes não precisaram de mais de vinte minutos para o fazer. Mas devemos sempre louvar a auto-crítica, especialmente quando ela é lúcida, como a sua. O meu amigo precisou de uma década para perceber quem são, na realidade, os "outros" nesta história toda, mas finalmente as coisas surgem-lhe claras como são. É sempre uma ocasião especial quando lampiões e portistas estão de acordo, e julgo que o seu testemunho conta bem a história do campeonato português até aqui. É certo que nos primeiros anos a interpretação foi um bocadinho turva, mas nessa idade os meninos andam mais distraídos com as fechaduras dos quartos-de-banho (note-se: não casas-de-banho) das meninas.
O meu amigo continue assim, cada vez mais lúcido, e quem sabe um dia chegará a adepto do FCP.

 
At 3:06 PM, Blogger Helena Henriques said...

o_O Deve haver algum gás esquisito espalhado pela 2ª circular, só pode! Até deve ter chegado ao Restelo, só que no bom sentido :D

 
At 3:27 PM, Blogger Efe said...

O bebé tá com dói-dói? Óóóóóó...

 
At 3:35 PM, Blogger Diego Armés said...

Maria, José e Férenc: ver post de quinta-feira. Vejam se arranjam algum sentido de humor, por favor...

Vinhas, o Belém foi campeão na década de 40, pá.

 
At 4:00 PM, Blogger Efe said...

Bons tempos.

 
At 4:04 PM, Blogger Antão Bordoada said...

Compraz-te com os despromovidos que para a semana o Belém vos vai deixar... (fill the blank)

 
At 4:39 PM, Blogger Diego Armés said...

Comovidos?!

 
At 4:41 PM, Blogger Efe said...

desprovidos?

 
At 8:29 AM, Blogger vinhas said...

O Presidente do SLB disse que ninguém morre sem a Liga dos Campeões. E sem a UEFA? Dá direito a um curitas?

 

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