Eu costumo escrever sobre os males da minha equipa e mandar recados ao treinador do Benfica, aos jogadores e ao presidente. Ando nisto há uns três ou quatro anos e, feitas as contas, ninguém me liga nenhuma. Por isso, hoje vou falar dos outros. Pronto. Ah, e é possível que mande gente à merda e coisas assim do género. Ultimamente ando muito impulsivo e não posso responder por mim.
Para começar, com o mal dos outros posso eu bem. Aliás, muitíssimo bem. Mais, regozijo-me com o mal dos outros. Sócrates defendia que só o oposto permitia a ampla definição e consequente percepção de um fenómeno. Só conhecerás o bem se conheceres o mal, o prazer se conheceres a dor, o preto se souberes o que é o branco, e por aí fora. Eu vou mais longe que o Sócrates: só conheço o meu bem se os outros estiverem mal. Senão, estando todos nós bem, não estou bem
pôrra nenhuma. Se a gente não se diferencia, não é, como é que eu sei se estou bem, se olho para vocês, meu bando de retardados, e vos vejo felizes? Isto não é assim que funciona, senhor Sócrates. Ponto um, que é inegociável: no futebol, eu só conheço o bem se os outros estiverem mal.
O meu problema aqui é esses "outros", que cada vez mais assumem uma identidade transitória ou, indo mais longe, mutante. Uso o termo "mutante" porque uma pessoa associa um "mutante" a uma cena feia, disforme, mal-cheirosa e não sei quê. E ranhosa. Portanto, uma
tixa. Só que em mutante, que é ainda mais feia, disforme e mal-cheirosa. E ranhosa e não sei quê. E já lá vamos, estou só a
engonhar. A introduzir, digamos.
Eu sou do tempo em que os
matrecos eram Benfica -
sportém.
Mainada. Um gajo era
puto e nascia ou do Benfica ou, com algum azar, do
sportém. Quando ocorria este segundo caso, havia sempre um primo mais velho que tentava, à custa duns
carolos e duns cromos do europeu ou do mundial, encaminhar a criança. Quando esta se revelava demasiado obtusa, a malta desistia e dava-lhe uma alcunha esquisita, toda
loser. O que não faltam aí é
nelinhos e derivados. Depois, havia uma terceira alternativa: malta que nascesse nos subúrbios de Matosinhos, por vezes, nutria uma paixão injustificada por um tal de
folcuporto. Mas a esses não dava para tentar rectificar, porque estavam longe e falavam com uma pronúncia estranha e
bês em tudo quanto é lado. Mas "esses" também não chateavam ninguém e suspeito que mesmo lá no buraco deles, se queriam jogar
matrecos, tinham de escolher entre o Benfica e o
sportém, como as crianças normais.
Nesse tempo, eu torcia pelo Benfica, com toda a paixão, e contra o
sportém, com uma pontinha de nojo e aquela superioridade explícita e justa com que
deus dotou todo o benfiquista. Nesse tempo, se o
folcuporto jogava na Europa, eu achava imensa piada e puxava por eles como se se tratasse do Vitória de Setúbal ou da Académica. Por exemplo, quando o
folcuporto foi
camp... enfim, quando ganhou lá cena aos alemães com os calcanhares e não sei quê, eu achei aquilo extremamente inovador, por um lado, e cómico, por outro. O
folcuporto tinha esse encanto para mim: tinha um presidente que falava devagar e
esquisitamente e dizia piadas muito rebuscadas; tinha um capitão de equipa que falava tão mal que não se percebia; e tinha um treinador que falava bonito, mas que também não se percebia. E ganhava jogos com os calcanhares. Não é o máximo? Eu acho.
Não me apercebi, nesse tempo, que aquilo era apenas o princípio da tal mutação. Estavam a nascer os novos "outros". Porque a gente, à segunda-feira, encontrava-se na escola e dizia "
atão? Os 'outros' lá levaram mais 3 do Covilhã... eh eh eh" e pumba, o Paulinho das Calças ia para o meio da roda e levava boladas para assinalar a ocasião. Ou então "
epá, os 'outros' estão a quantos de nós? 8 pontos? Isto 'tá perigoso..." e
continuávamos paciente e cientificamente a espreitar pela fechadura da casa-de-banho das raparigas - o
Tiquinho, irmão do
Nelinho, ficava de guarda, não fosse aparecer a
shô-
contina. E, enquanto nos distraíamos numa alegria pré-púbere, com a inocência de quem descobre coisas novas, quer nos quiosques onde, até então, apenas A Bola era motivo de interesse, quer em casa da
Clarinha, às terças e quintas-feiras, o
folcuporto ia continuando a fazer coisas estranhas, como ganhar campeonatos, de vez em quando, e, mais frequentemente, uma outra caneca que eles inventaram para serem sempre eles ganhar, que era a supertaça.
Anos mais tarde, já a
Clarinha era casada com um sargento da
EPAM, que sofria de falta de auto-confiança, e o
Nelinho começava a cumprir 15 anos no
Linhó, comecei a pensar "hum... mas eu torço contra 'os outros' e afinal quem nos anda a fazer concorrência, já lá vão 18 anos, são aqueles lá de cima?!...
Nah, isto tem de mudar". E mudou. A teoria comprovou-se que era séria, encarregou-se o tempo de o fazer, pois o
sportém nunca mais chateou ninguém que importasse e o
folcuporto voltou a ganhar taças na Europa e campeonatos e, claro está, as famosas supertaças.
Tudo corria muito bem, com extrema normalidade, de modos que a gente já nem ligava às
tixas, eram apenas mais uma forma de entretenimento, semelhante à
Playstation, às lutas na lama ou às despedidas de solteiro do pessoal. Não tinha importância nenhuma nas nossas vidas, fazia-nos rir e, por vezes, cometer excessos, fazer um ou outro disparate ou até mesmo pagar para ver. Os Outros eram, oficialmente, o
folcuporto. As
tixas eram as
tixas e pronto. Os paralíticos, a
turminha ou os
nelinhos são outros epítetos aplicáveis ao referido grupo excursionista.
Dizia eu que corria tudo muito bem, mas deixou de correr. Estava eu este domingo no meu repasto, a pensar em 10 cenas fixes para dizer hoje quando chegasse ao trabalho, só naquela, não fosse o
Lisandro tecê-las... ainda mais, quando dou por mim a festejar ardentemente um golo de calcanhar de um rapaz da União de Leiria. Tenho para mim que foi reminiscência.
Aquele calcanhar, aquela pontinha de nojo pelo Tonel, aquela vontade de rir tão feliz e inocente, um certo desejo de vingança e a sensação de "bem" por oposição à noção de que "os outros" estavam mal... que mal, estavam péssimos, estavam no fundo do fundo, estavam a ser
rabiados, humilhados, esmagados pelos últimos classificados, fez-me sentir um apreço pelo meu ódio ao
sportém como há muito não sentia. De tal forma, que, enquanto os verdadeiros "outros" nos aviavam, sem espinhas e com algum cuidado para não estragar, duas batatas sem resposta, não consegui desfazer o semblante sorridente e nem levei a mal aos
tripeiros o facto de nos terem ganho mais uma vez. Por um dia, o
sportém voltou a ser "os outros". E hoje, um pouco por todo o planeta, as crianças brincam com normalidade... "
Nelinho, és tu no meio"... Às vezes, a vida é tão simples.