Quero a minha alma de volta!
Confesso que nele depositei muitas esperanças quando soube da sua contratação pelo Benfica. As credenciais eram boas e deixavam pouca margem para enganos: titular da selecção, ao lado de Dario Prso - ponta-de-lança que muito admiro - e melhor marcador do campeonato croata, Tomislav "Tomo" Sokota chegava à Luz e fazia-me acreditar que, finalmente, o Glorioso tinha um striker à sua medida, um matador robusto, inteligente e eficaz. Acontece que Tomo tinha o calcanhar rachado ou coisa parecida. Resultado: a Catedral terá sido pouco mais do que uma luxuosa clínica de recuperação para este avançado que, sem dúvida alguma, tem azar no jogo que abraçou como profissão. Compreende-se este azar: com a sorte que teve ao amor, estranho será se não passar toda a carreira de muletas... enfim.
Depois de quase dois anos de molho, durante os quais, para além de tratado e recuperado, Tomo Sokota foi pago, o croata regressou finalmente aos relvados para provar que não era apenas uma pessoa portadora de deficiência: tinha mesmo qualidade e queria um lugar entre os titulares. Força de vontade talvez não lhe tenha faltado. Já talento e engenho teve-os às pinguinhas, em fogachos, ocasiões raras, dias de excepção. Do que me lembro de Sokota no Benfica, o que de melhor fez aconteceu numa meia-final da Taça de Portugal, na Luz, contra o Belenenses, na qual marcou dois golos em 9 ou 10 minutos, logo a abrir a partida, contribuindo decisivamente para a presença na final - que haveríamos de ganhar, frente ao "Porto de Mourinho" (convém sempre sublinhar - é que é diferente o "FCP" banal do "Porto de Mourinho"). Fez isso e mais uma dúzia de golos, se tanto - um deles também contra o Belenenses, em jogo de má memória, na mesma época, parece-me, no Restelo -, em três e anos e uns trocos de Digníssima sobre o esqueleto.
Comecei a juntar dois e dois: ora, esta afinidade entre Tomo e o Belém já me dava para desconfiar. "Então aqueles pastéis parece que têm uma parede à frente da baliza quando jogam contra o Benfica e este paralítico vem e marca-lhes sempre uma batata, pelo menos? Algo não bate certo", pensei eu para comigo. E não batia mesmo: Sokota andava feito com o FCP, claro está. Daí que a sucursal sulista do antigo clube de Mourinho abrisse as pernas sempre que Tomo chutava à baliza - era para valorizar a futura aquisição, evidentemente - "ah, era o único gajo do Benfica que marcava ao Belém". Isto, por um lado. Por outro, era para chatear e dividir os benfiquistas, que assim nunca sabiam se haviam de preferir o absentismo golista de uma Amelinha ou a deficiência motora do croata com uma mulher de sonho - daí a compra de Karadas, que teve o simples intuito acalmar as hostes num terceiro anel que passou a exclamar "bom, pelo menos não é o norueguês. Não há Azar. Eh-eh" quer entrasse o português efeminado, quer jogasse o marido-da-minha-gaja a titular. Adiante.
Finda a época passada, consumou-se o que há muito era especulado. Sokota apanhou o comboio, passou Santarém, passou Entroncamento, passou Pombal, Coimbra B, por aí fora, só estacionou em Campanhã. Da estação ao Aileron foi um tirinho e parece que nem táxi apanhou. E eu pensei para comigo - embora o tenha gritado com algum poder sonoro - "filho de uma grande vaca balcânica, havia de te aparecer um Petit que te fizesse os calcanhares não em dois, mas em oito!" Depois da reclamação de alguns vizinhos, acalmei. Mas nem por isso perdi a raiva ao croata ingrato. É que, reparem, se ele fosse para um Moreirense, para um Farense, uma Ovarense - qualquer coisa terminada em "ense" que tivesse ordenados em atraso - eu até nem me importava. Agora, depois de chular a Sagrada Instituição vira-se e vai para os tripeiros. E leva a mulher, ainda por cima! Merecia uma praga. E eu roguei-lha.
Ora, já se sabe que deus não dorme. Porém, calhou bem e tive timing na prece - deus não dormia mas também não estava muito desperto e a mezinha lá passou, mostrando ter muito maior eficácia do que os pés do homem do calcanhar bífido: ainda a época não começara e já Sokota explanava toda a sua arte na enfermaria portista. A camisola mudara, mas o estilo de jogo mantinha-se, único, inconfundível. Feliz da vida, embora um pouco relutante, lá entreguei mais um quarto da alma a quem ma comprara, pessoa que agora não vem ao caso. O fim justificava os meios. E pronto, o tempo lá passou, o Porto lá foi pagando ordenados ao inválido e, enfim, tudo decorria num clima de normalidade.
Acontece que, para grande gáudio do adepto portista médio e de Pinto da Costa himself, escreve O Jogo de hoje, à página 17 em baixo, que o homem da fisioterapia está "quase pronto". Primeiro, pensei que o título remetesse para algo do género "calma, o rapaz ainda lhe custa a calçar-se mas ele vai tentar chegar a horas ao tratamento". Mas não. Qual não é o meu espanto quando percebo que, afinal, Tomislav vai voltar aos relvados! Dá para acreditar? E agora? Não pensem que me desfaço de mais um quarto de alma, meus amigos. Se é para o Tomo se lesionar com gravidade, a natureza vai ter que seguir o seu curso sem a minha intervenção desta vez.